O leitor- guia
Professor, escritor, crítico literário ou leigo, o leitor-guia possui função decisiva na leitura de qualquer texto. É através do modo como ele encara o ato de ler que sua leitura far-se-á mais ou menos interessante.
Sempre defendi uma leitura plural, onde os aspectos propriamente literários da obra não fossem antepostos quando dos comentários iniciais. Ou seja: a primeira tarefa - essencial a meu ver - seria estabelecer, entre o leitor e aquilo que ele leu, uma relação efetiva com o seu cotidiano. Isso significa ler levando-se em conta a diversidade de assuntos que um bom livro pode nos sugerir.
A diversidade apontada acima passa por percebermos na obra seu nível histórico, filosófico, sociológico, psicanalítico, político, existencial e o que mais aí couber, deixando-se as classificações de personagens, de narradores e questões afins como esclarecimentos eventuais, se o público, para compreender a obra, deles necessitar.
É nesse momento que escolher o leitor-guia adequado torna-se importante. O perigo de certas eleições é o de nos deixarmos fascinar pelo grau de "especialização" de certos professores (sem, em momento algum, negar a importância da informação e do aprofundamento) que, na primeira oportunidade, tratam de exibir determinados conhecimentos não necessariamente úteis ou que fogem ao interesse dos leitores em geral.
Muitas vezes, ao receberem o convite para ler nas Rodas, alguns professores alegam não serem "especialistas" na matéria. Digamos, se o autor pertence à literatura hispano-americana, o professor alega "não ter formação naquela área específica", não podendo, por isso, realizar o trabalho. Mal sabe ele que, quando chamo alguém, estou interessada no profissional enquanto leitor, no tipo de percepção e dinâmica que irá criar em torno da leitura.
É minha convicção de que não preciso, necessariamente, me especializar num certo tipo de literatura ou gênero para poder conversar sobre ele criativamente... Sequer penso que deva ler a obra completa de um determinado autor para abordar, em público, um texto seu. Sou, antes de tudo, professora de literatura e escritora. Ler é minha profissão, minha paixão e minha competência. Leio tudo, sobre tudo. Sem preconceitos. E comento o que for possível, dentro dos meus limites, que são muitos.
Com isso, não advogo, como já disse antes, a leitura impressionista ou superficial. Simplesmente não me parece que ser "sério" signifique especializar-se em um determinado "ramo" da literatura, para poder comentá-la com uma platéia.
O interessante, nas Rodas, é que a responsabilidade didática ou acadêmica desaparece, dando lugar a um tipo de relação mais, digamos, prazerosa com o que é lido.
É preciso lembrar que o programa tem por objetivo fazer nascer o leitor escondido dentro de nós, sejamos médicos, estudantes, donas-de-casa, executivos etc. Não estamos, portanto, diante de público especializado e talvez a maior dificuldade resida aí. Quem é meu público? Para quem falo? Esta pergunta deve rondar a cabeça da maioria dos guias de leitura, pois como vamos abordar um texto se não temos público definido?
A esses questionamentos eu responderia mais como escritora do que como professora. A solução, nesse caso, é optarmos pelas leituras pessoais que, em geral, são muito mais criativas. Muito provavelmente o autor, na hora de criar, não pensou em um público específico, porque o bom texto fala um pouco de tudo, para todos. Façamos como ele, o que não significa nem de longe abordagens superficiais em nome do espontaneísmo.
O ato da leitura deve, de preferência, ser tão inventivo quanto o momento da criação da obra. Utopia? Não. Ler, e ler literatura, é escrevermos uma outra, e a mesma história, dentro de nós.
Para atender a interesses tão diversos, creio que o leitor-guia deverá descobrir para/com a platéia o que na obra lida existe de informação, de conhecimento do mundo, o livro servindo de ponte para a compreensão da nossa vida de hoje, de ontem ou amanhã. É realizando leituras criativas, propondo ao público as mais diversas questões e provocando-o que isso pode acontecer. A entonação, as pausas, o tom de voz, também são fundamentais, bem como a facilidade de comunicação.
Às vezes, pessoas brilhantes não são tão bem-sucedidas quanto outras, cujo suporte teórico-crítico é menor. Dependendo da situação, não é preciso que o guia de leitura seja, necessariamente formado em Letras.
Há estratégias interessantes. Um dos nossos leitores-guias, por exemplo, ao ler "O Espelho", de Machado de Assis, falou um bom tempo, antes de iniciar a leitura, sobre o significado do espe- lho na cultura ocidental, retomando alguns desses significados ao final da narrativa. Outro, iniciou sua leitura de "0 Bilhete de Loteria", de Anton Tchecov, perguntando ao público - o que fariam se ganhassem na Loteria Esportiva? Com estes dados colhidos de antemão, iniciou a leitura do conto que é, como todos os textos de Tchecov, um profundo estudo da alma humana e da sociedade russa de então. Outro leitor-guia, ainda, propôs às pessoas, no final da análise do texto, que escrevessem um bilhete à protagonista de um conto de Moacyr Scliar.
Casos, piadas, passagens interessantes da biografia do escritor, brincadeiras, imagens projetadas em uma tela, vídeos são ótimas formas de chamar a atenção do público antes, durante ou após a leitura.
Quando o leitor-guia for o próprio escritor, então as coisas mudam. Para melhor, ou para pior. Para melhor, no sentido de que ele é a atração principal, o testemunho máximo da obra e a discussão ou conversa torna-se mais conseqüente, mais viva.
Às vezes, porém, a presença do autor pode intimidar o público (o que é raro), ou o próprio inibir-se um pouco para discorrer sobre seu trabalho (o que acontece com freqüência, pois, na maioria das vezes, o autor não é a pessoa ideal para falar sobre sua própria obra).
Nesse caso, a figura de um mediador, que conheça literatura e tenha lido a obra em questão, é importantíssima. Em última análise, essa espécie de "curinga" pode atuar como entrevistador, dinamizando o encontro.
Cada leitor-guia, claro, possui um determinado modo de ler e essa variedade é necessária bem como a escolha inteligente e sensível dos textos da programação.
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